Quem não era muito adepto do café na Travessa Anselmo de Braancamp era Barão Vermelho. O solitário homem, que de resto vivia numa enorme casa na Avenida dos Combatentes, mas sozinho, preferia o café Bom Dia na Praça Velasquez, onde se sentava, ou na esplanada ou no aquário, com o seu cachimbo, sempre debruçado sobre papéis, num secretismo que nos impede de lhes revelar a natureza.
De resto, estava sozinho durante toda a hora de almoço, ainda que não poucas vezes a tão simpática Dona Pranto se tivesse oferecido para o acompanhar, companhia da qual muito cortesmente ele se soube descartar em cada vez. Mas apenas porque a hora das refeições era para ele uma comunhão consigo próprio, pelo que preferia estar sozinho.
Alias, se, de volta ao café em Anselmo de Braancamp, nos focarmos na conversa que se desenrola ainda na mesa dos Doutores e das Veteraníssimas, podemos ouvi-los falar sobre os hábitos e companhias de Barão Vermelho.
Antes de prosseguir, devo explicar, para os que eventualmente não saibam, que em Vila Real de Trás-os-Montes, a palavra "fados" designa muitas vezes borga.
Posto isto, quando ouvimos Veteraníssima Von Ingres a dizer que era frequente que Dona Pranto arrastasse Barão Vermelho para fados, devemos entender que ela se refere não só ao acto de cantar o fado, mas também à borga.
Inicialmente, Dona Pranto levava Barão Vermelho a algumas casas ou festas de fados, onde se sentavam em frente a copos de cerveja e tremoços ou amendoins, ouvindo as belíssimas vozes entoar a dor. Só a custa de muito esforço o coração do nosso Barão não rebentava em lágrimas, passando-se o contrário com Dona Pranto, cujos olhos se inundavam de lágrimas logo às primeiras guitarradas.
Mas depois dos fados propriamente ditos, começaram as idas aos bares e a certas discotecas mais snobes, em que a barriga proeminente de Barão Vermelho não tinha complexos em dançar roçando o corpo de Dona Pranto, isto estando ambos um tanto tocados pelas bebidas. O que também começou foi o aspecto ensonado com que frequentemente o presidente anda todo o dia, e que as Veteraníssimas, pela perspicácia da observação há muito aprenderam a discernir. Neste dias vale-lhe a compreensão e a paciência de Prior Pepsodent, o seu acessor, que, à custa de muita hipocrisia e de muitos fretes conseguiu caír nas graças de Barão Vermelho, que é como quem diz que caiu direitinho do Reino de Deus. Este Pior é um homem particularmente solitário, árido até, que usa um sorriso como quem usa boxeurs, mesmo que esteja a tecer os mais desagradáveis comentários imagináveis.
Mas, se estamos a falar das graças em que Prior Pepsodent caíra, as de Barão Vermelho nem por sombras se comparam às de Dona Calores. Esta hipertérmica Mulher-a-Dias apaixonara-se por Prior Pepsodent quase à primeira vista. Os atributos físicos do homem, o seu discurso ou a sua inteligência não são factores que nos ajudem a perceber esta paixão, dado os seus níveis estarem em todos os casos abaixo da média. Mas é certo que o coração pensa de uma forma que muitas vezes nos ultrapassa e eventualmente verá coisas que nós, mesmo com um olhar atento, não seremos nunca capazes de ver.
Daremos este benefício de dúvida a Dola Calores, e prossigamos: desde essa altura, já lá vão sete anos, data em que a Mulher-a-Dias ali ingressara, que o seu pobre e acalorado coração estremece sempre que passa ou pensa no Prior. Tantas as crises de choro que Dona Pranto já presenceara por parte da amiga, sempre incapaz de atraír a atenção do distraidíssimo homem. A ideia possivelmente muito lógica de lhe declarar o seu quase psicótico amor não chegou a atravessar-lhe nem que brevemente os planos. Ela preferia decotar-se e falar para ele languidamente. Mas o acto de sedução nem sempre é evidente. Às vezes é mal interpretado.